uma das noites

hoje depois de anos olhei diretamente pro rosto do meu pai, e tinha me esquecido que era especificamente daquele jeito. fiquei tentando encontrar traços que eu tenho e o maxilar é parecido. percebi de diferente do que me lembrava do rosto dele, a barba grisalha, os olhos com manchas que me preocuparam um pouco, a cara de assustado por eu ter falado que já conheci todo tipo de gente em são paulo e ele não podia mais me enganar, nem me manipular como sempre fez.

falei com carinho todas as coisas, até a parte sobre querer que ele fosse feliz longe da gente porque perto ele nos machucava e se machucava. ele perguntou se eu achava que ele tava feliz e claro que respondi que sabia que não tava e por isso tava ali olhando nos olhos dele, depois de tanto tempo, falando com respeito não de filha pra pai, mas de humano pra humano.

falei como eu entendia sobre o vício dele, que não o julgava, que nem por isso tinha perdoado tudo, mas que sabia o quanto era complicado ficar triste e querer beber pra esquecer da tristeza. e eu já senti meu pai triste e sem esperança tantas e tantas vezes — como eu disse não sinto pena hoje em dia — mas tento vê-lo como humano, bem antes de como meu pai, porque ele tá aqui e não quero mais sentir ódio ou rancor do que já passou.

ele ficou me olhando e me chamou de filha quando foi tentar se justificar, ou contar o novo plano dele de como ele sairia de casa e viveria a vida. eu achei estranho ele me chamar de filha porque eu nem lembro a última vez que ouvi a voz dele falando isso. claro que senti que foi falso, e não vou me admirar com o que pode vir, foi estranho e nem sei se ele acha estranho também ou ele só não sabia que podia me chamar assim antes.

eu disse que se ele continuasse morando em são paulo ele pararia na praça da sé, e perguntei se ele queria que eu pagasse ou arrumasse uma reabilitação pra ele. isso soou ofensivo e ele rebateu:

“por que você não paga pra você?”

eu poderia ter me incomodado com a defensiva, mas disse que eu tava falando de levar ele pra lá não como julgamento, mas porque eu amava ele, e queria o bem dele, e que até eu sucumbiria se continuasse do jeito que ele tava, e que se eu pudesse ir me tratar quando eu tinha vontade de morrer eu iria, que tava tudo bem qualquer pessoa procurar ajuda médica porque temos que aceitar o vício como problema pra conseguir encarar e tentar se curar.

não consigo parar de lembrar da expressão de assustado e surpreso, como se tivesse me vendo também depois de muito tempo, me ouvindo como ser humano, talvez, eu espero. ele sempre falou mal de mim pras pessoas, por conta da minha sexualidade, por eu fumar maconha, por eu gostar de sair e ter opiniões. mas se eu fosse deixar de querer que ele fosse feliz só porque ele já falou de mim em alguns momentos, eu ia me encher de rancor e mágoa do que já passou e nada adianta o passado, não tem como alterar absolutamente nada, nada.

não quero mais sentir que sou um experimento sobre o quanto ele consegue magoar. eu disse pra ele que eu tava sendo compreensiva não porque sou inocente ou tenho esperanças que ele mude, mas porque eu sabia que só deixando ele ir pra longe ter a própria vida me deixava tranquila, eu conseguiria ficar bem também. não quero pendências, raiva, nada que me deixe tendo sentimentos ruins. e eu só teria sentimentos bons se ele tivesse morando logo no sertão da paraíba com os pais, a tia, a irmã, um gado pra mandar pro pasto e sei lá, só o tempo pra lidar.

eu não aguento mais morar no mesmo lugar que ele.

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